15 de março de 2008

Autópsia de um homem vivo


O guardador, de Diego Benevides

Crítico francês Bazin acreditava que a morte e o sexo (petit-mort) são assuntos limítrofes da experiência humana, e portanto, não são passíveis de serem mostrados na tela, pois o fato em si seria muito mais relevante do que qualquer experiência estética. Enfim, algo como um filme pornográfico não seria bem um filme, seria um ato sexual documentado. E nesse caso, podemos pensar que filmes como ‘faces da morte’ (ou também os lendários snuff) não tem importância enquanto obra cinematográfica, mas de qualquer forma alimenta a mórbida curiosidade humana.


Em Thesis, filme espanhol dirigido por Alejandro Amenabar (o mesmo de ‘Abra os ojos’) uma cena logo no início traduz melhor essa idéia do fascínio pela morte. Vemos um grupo de pessoas olhando para baixo, para os trilhos do metrô, indicando que uma tragédia acabou de acontecer e um ser humano se esvai em sangue e tripas depois de ter sido atropelado. Acompanhamos a personagem central do filme que chega perto da multidão, sente curiosidade, mas vacila se deve ou não olhar. E é neste ato (de entrega ou repulsão) de olhar ou não olhar, algo canonizado no cinema com a imagem da mocinha que tapa os olhos e se encosta no ombro de seu namorado no momento clímax dos filmes de horror, que podemos pensar no voyeurismo, na representação da morte, na força ou fragilidade de uma imagem e no sentido construído por um filme.

Talvez nada disso esteja evidenciado em ‘O guardador’, vídeo documentário de Diego Benevides que repercute atualmente ao ser selecionado no CINE-PE e após vencer no Fest-Aruanda como melhor vídeo paraibano (esse lance de filmes e festivais ainda terá um post próprio em breve), mas de forma sutil essas questões lá se encontram, e justamente por isso a cena mais comentada é quando vemos por alguns segundos, ou talvez apenas 1 segundo, um cadáver em decomposição sendo levemente levantado pelo personagem condutor do filme.

Ele, o guardador, fala sem pudor sobre a sua relação com a morte, ou mais precisamente, com os cadáveres que serão estudados por universitários. Como um coveiro, ou um médico legista, a morte e seus sórdidos detalhes (corpo apodrecido, pessoas sem identidades, cheiro de formol) fazem parte de seu cotidiano, de seu ofício, de sua vida enfim. E aí a morte fica em segundo plano e o interesse recai exatamente no personagem central, algo típico dos ‘documentários de personagens’ e que costuma funcionar muito bem junto ao público quando se tem a sensibilidade e a esperteza de saber dar contornos a esse estranho tipo de personagem no limite entre a ficção e a realidade. Aos poucos, o guardador deixa de ser sinistro e passa a ser meio lunático, arrancando risos com o seu humor e a sua paixão frenética pelo seu trabalho. Mas justamente aí a morte deixa de ter força... e a vida prevalece mais uma vez.

Seria importante outras considerações sobre o filme de Diego, principalmente no que se refere ao processo de produção. Filme de uma pessoa só, que tem dado muito certo nessa era de vídeo digital e ilha de edição caseira (graças a deus). Mas por ora, acho mais importante frisar o tema da morte mesmo, da morte em sua crueldade nada asséptica, mas ao mesmo tempo escancarada em sua dimensão prosaica e banal, matéria-prima de estudantes universitários e profissionais com vida própria como o guardador. Diego também dirigiu uma ficção abordando a morte, Sina, mas não se saiu tão bem provavelmente por ter superestimado os contornos filosóficos e artísticos que envolvem o tema. Virou uma obra afetada, mas a idéia de que ele faça da morte a força motriz de sua obra me parece uma das melhores faíscas criativas surgidas no contexto do cinema DECOM, como alguns já passam a chamar os filmes feitos sob a chancela da universidade (que anda bem meio boca por sinal). Outro ponto a ser discutido e questionado.

3 de março de 2008

Enraizados - Com excelência fotográfica, a música acabou sendo desperdiçada



crítica por Calina Bispo

Curta-metragem Enraizados, dirigido por Niu Batista e lançado na quarta-feira (27) no belo Theatro Santa Roza. Um vídeo de fotógrafo. Isso não há dúvida. Apesar das consistentes interpretações dos poetas Marco di Aurélio e Chico Viola.

Em poucas palavras o vídeo nos apresentou Minervino e Salustiano. Interpretados por dois homens, artistas e poetas dedicados a personagens densos. E é neste ponto que o roteiro e a direção de Niu Batista precisa amadurecer mais. A idéia subjetiva e introspectiva da vida de dois homens isolados de quaisquer resquícios de urbanidade é fértil, mas não eficaz, principalmente quando ela se instala em solos sertanejos.

Dramaticidade e tragicidade estavam presentes. Isso também ficou claro. O que não ficou claro foi a presença dos dois homens. E a transformação que a tragédia provoca? Isso não existiu, mas existiu o sofrimento e o conflito de idéias a citar o diálogo entre os irmãos sobre a ordem da mãe falecida em que os filhos não deveriam, jamais, ultrapassar as montanhas. Um comenta apenas reforçando a ordem, o outro contesta, mas também não ultrapassa. Uma boa metáfora para a vida, mesmo não sendo bem resolvida.

Um elemento fílmico se tornou excessivo e desperdiçado pela excelência da fotografia de João Carlos Beltrão: a trilha sonora. Feita exclusivamente para o vídeo, as composições são bonitas, mas não se encaixam com a textura fotográfica, nem muito menos com a narrativa do vídeo.

Em cenas como as que anunciavam o final trágico de um dos personagens, a música acaba se transformando em ruído, interrompendo bruscamente a harmonia do espectador com o texto visual. A pulsão na direção de fotografia dispensa qualquer elemento a mais.

A trilha sonora, que deveria ser um elemento fílmico, acabou provocando uma polifonia que não agrada nem aos ouvidos nem aos olhos que se encantam com as cenas que poderiam ser mais belas se o som direto tivesse sido mais explorado.

Quanto ao tempo do filme, foi bem aproveitado, pois não torna o vídeo denso nem cansativo, mesmo com poucos diálogos. Mas tem um problema. Como não há muito esclarecimento sobre o texto fílmico, o espectador acaba ficando meio que perdido por não entender bem do que se trata Enraizados.

Sabemos que é um breve tempo no tempo daqueles dois irmãos. Sabemos que eles têm referencias familiares muito fortes, mas não sabemos porque eles nunca saíram dali. Será que foi só porque a mãe deles disse para não faze-lo? E Minervino, o contestador? Se ele contesta, porque não muda e enfrenta?

Parabéns a Niu Batista que amadureceu em seu trabalho de direção. Isso é perfeitamente comparável quando relembramos O Mundo Yan, seu penúltimo vídeo, também dedicado a dramas pessoais, ao retratar as variações, aflições e alegrias de um portador de necessidades especiais.

Ao contrário do Mundo de Yan, Niu escolheu em Enraizados um caminho mais intimista ao dispensar os diálogos e investir na fotografia. Suas escolhas são mais seguras, revelando sua sensibilidade para investigar e emoldurar os conflitos pessoais do ser humano.

Niu Batista mostrou-se decidido ao lado de Marco di Aurélio, em fazer sem nenhum tipo de incentivo público ou privado, esta produção que é livre de imposições comerciais. A liberdade de Enraizados está garantida pelo trabalho em equipe que foi feito.

Uso aqui uma frase de Bruno de Salles, diretor do premiado Cão Sedento, ao final da estréia de Enraizados: “o cinema paraibano está vivo e as pessoas precisam saber disso!”.

É isso mesmo! Tão vivo que nossas produções não param. As pessoas estão sempre se organizado para filmar ou grava algo novo, ou propor um novo olhar em torno do velho. Prova disso é sabermos que há um Marcos Villar fazendo um vídeo poema sobre a barreira do Cabo Branco, ou um Otto Cabral que pretende documentar em um matadouro de Patos um daqueles homens que são responsáveis por esquartejar o boi e que na sexta-feira santa não trabalha – passa o dia na igreja, ou ainda um Arthur Lins que pensa em fazer um faroeste aqui em João pessoa, ou um Tiago Penna e sua Água Barrenta...a lista é grande...