26 de julho de 2008

Banzo Analítico e o Cinema Paraibano Hoje e Amanhã


sobre Banzo Analítico, de Taciano Valério

Por Anacã Rupert Agra
Publicado na 8ª edição da revista/jornal/zine A Margem)

O filme “Banzo Analítico”, 2008, de Taciano Valério, demonstra, de uma forma um tanto geral, que o cinema paraibano já tem o necessário para fazer boas obras. Do aspecto técnico não se pode reclamar. A fotografia é competente, embora um tanto acadêmica, a direção é segura, e a montagem é responsável e vertical, pois consegue agilidade ou linearidade, de acordo com o necessário para o filme. O filme carece, realmente, de texto. Não digo apenas texto falado, pois quanto a isso nem se pode exigir muito de um filme que não tem diálogos, mas apenas um monólogo bastante elíptico, e essas falas nem são tão más, são, às vezes, até interessantes.

A falta de texto a que me refiro diz respeito ao roteiro no todo. Para se contar uma história, é preciso ter uma história para se contar, isso é o mais básico. Pode-se argumentar, tão ao gosto do cinema independente, principalmente o cinema pobre (pobre em recursos monetários mesmo), que se trata de um filme lírico. Ora, não há dúvida de que existe uma história no filme “Banzo Analítico”, embora apenas embrionária, apenas um fio de história, mas ela está lá. Sendo assim, trata-se de um filme narrativo, e um filme narrativo precisa de uma boa história. Essa é a maior falta do cinema paraibano. Falta uma boa história para se contar. Não que elas não existam por aqui, claro que existem. Mas onde estão os cineastas capazes de reconhecer uma boa história e colocá-la na tela? Já vi algumas, e cito aqui dois filmes com boas histórias, filmes recentes, paraibanos (os primeiros que me lembro agora): “A encomenda do bicho medonho” (de André da Costa Pinto), e “Instrumento detector de alguma coisa” (de Otto Cabral).

“Banzo Analítico” se resume a uma consulta com um analista. Um homem jovem fala de seus problemas de forma tão lacunar que se torna quase impossível para o espectador recriar, na sua imaginação, os problemas dele. Confrontando as imagens em preto e branco do homem no divã, há as imagens coloridas de uma criança que fita o espectador, como se pedisse ajuda. A criança também aparece nas imagens em preto e branco, em uma montagem interessante, que metaforiza o retorno do homem à infância, seja em lembrança, seja em trauma. O filme começa com uma bela imagem de um trilho de trem, em preto e branco, com alguém se aproximando de outra pessoa (sabe-se depois que é o menino, a criança que se torna o homem analisado) que joga pedras no trilho. Vem o título do filme, em vermelho, e logo temos uma cena recheada de minimalismo, em que um homem se prepara para começar sua análise. De forma metódica, ele retira sapatos, meias, carteira, relógio, e os coloca no chão, em posições simétricas. Várias imagens repetidas desse mesmo ato, com pequenas alterações, são intercaladas na montagem, de forma que a repetição do gesto, no tempo, ou na memória, espelha-se na edição, com imagens repetidas e fragmentadas. Pelo que diz o homem no divã, podemos entender, de forma um tanto geral, que o trauma dele é ter sido retirado de casa, mas não sabemos sob que contexto.

Se atentarmos para o “banzo” do título, podemos inferir que o caso dele é de nostalgia, de uma saudade que ele sente do passado, de um lugar onde ele viveu e não vive mais, de ter sido retirado de seu lar, tal qual os escravos africanos, cujo banzo terminava muitas vezes em suicídio. O homem, agora de condições aparentemente bem melhores do que sua contraparte criança, parece não ter se recuperado desse trauma. Mas o que significa o trem que aparece tanto em imagem quanto metonimicamente, através dos trilhos e do som? Outro bom momento da montagem é o olhar do menino para o analista, que retorna como homem, criança dentro de adulto. Uma frase se repete: “não entendo por que tento vê-lo”. Recurso mais uma vez minimalista, mas o que essa frase revela? No final, o analista senta-se no divã e repete os gestos metódicos do homem. Mais uma vez pergunto: qual a razão disso? Simplesmente para dizer que a loucura está em todos? Muito simplista, não é isso. É ótimo quando um filme tem difícil entendimento, quando o espectador precisa compreender o que está por trás daquilo tudo. Mas se é necessário explicar, o filme falha. Um esforço mental para um melhor entendimento de uma obra revela uma boa obra, pelo menos em um aspecto. Quando essa obra se torna ininteligível, ela não consegue comunicar, e falha em todos os aspectos.

O filme ganha força, realmente, apenas nos aspectos técnicos. Além dos aspectos de que já falamos, como a direção segura de Taciano Valério, a fotografia competente de Breno César, e a boa montagem de Glauco Machado, Breno César, David Sobel e Taciano Valério, há uma direção de arte interessante, de Carlos Mosca, e um ótimo áudio de Gustavo S. Rocha, coisa rara no cinema brasileiro como um todo (se bem que, nesses últimos anos, isso tem mudado). As atuações são aceitáveis, principalmente a de Guaraci Silva, cujo trabalho no filme é o mais difícil: ele não só fala, grava seu monólogo, mas age praticamente apenas com o rosto, já que fica deitado quase imóvel durante quase todo o filme. Disso se conclui o que já foi dito, que “Banzo Analítico” é um filme emblemático de um problema cada vez maior no cinema paraibano: não ter o que contar. Domina-se a técnica, mas faltam idéias e histórias boas. O aspecto mais promissor do cinema independente no geral é a liberdade para se criar o que quiser. Os cineastas daqui, em geral, no entanto, parecem carecer da mesma coisa que carecem os poetas iniciantes: o domínio do tradicional. É preciso aprender a contar uma história de forma tradicional, acompanhando o modelo de narrativa clássico, antes de se fazer filmes “líricos”, da mesma forma que é preciso aprender a escrever um soneto antes que se use verso livre, verso branco.

6 de julho de 2008

Uma personificação de sentimentos

sobre Terra Erma, de Helton Paulino

Por Nathan Cirino
(Publicado na 7ª edição da revista/jornal/zine A Margem)

O lançamento de Terra Erma, novo filme do diretor Helton Paulino, reuniu no dia 18 de abril diversos cinéfilos campinenses na Associação Comercial de Campina Grande. O trabalho foi feito durante o mês de janeiro deste ano, somando cerca de 42 horas de trabalho de uma equipe composta por aproximadamente 35 pessoas.

O filme de quinze minutos de duração foi apresentado primeiramente por seu produtor, Ronaldo Nerys, e em seguida a palavra foi passada ao idealizador do projeto. Helton agradeceu ao próprio Ronaldo e também a Jhésus Tribuzi, assistente de direção e continuista, pelas contribuições a ele conferidas para realização do curta-metragem. Passada a solenidade – rápida, diga-se de passagem – fomos entregues à terra erma.

Inicialmente, o que chama a atenção são os créditos, inseridos criativamente em elementos do cenário. A partir daí já poderíamos deduzir o grau de cuidado e meticulosidade que a produção iria adotar. O curta mostra a história de um homem e sua necessidade de contemplar os encontros e despedidas em uma estação rodoviária. Somem-se aqui as oscilações de humor e toda a carga dramática que o personagem toma para si de acordo com as situações que presencia e teremos a premissa do filme. Um contexto simples, direto, mas rico em sua abordagem e sutilezas. Ver aquela simbiose entre homem e lugar é como viajar dentro do verdadeiro personagem: a rodoviária. Vagamos por ela através de um homem silencioso, que por vezes questionamos ser real ou não. O mérito de Helton está na sensibilidade de mostrar ao público mais que um contemplador errante, está em mostrar uma entidade, um símbolo que bebe, fuma, chora e ri. Quase uma personificação dos sentimentos ali presenciados.

Quando li uma apresentação do filme e fui informado de que os quinze minutos de curta-metragem não apresentavam falas, soube instintivamente que estava diante de um bom roteiro. Como afirma Michael Rabiger, cinema é ação: “tire o som de um filme e você saberá se está diante de um roteiro bem estruturado”, constata em seu livro Direção de Cinema. Um roteiro que se faz entender pelas ações, pelos olhares e planos tão próximos dos olhos quanto dos sentimentos. Claro que não estou aqui desmerecendo o som, mas apenas ilustrando a força da ação dramática explicitada no vídeo. Aliás, o som por sua vez é outro ponto forte. Guga Rocha mais uma vez realiza um trabalho competente, rico em suas variações de elementos. Diversas vezes, a sensação de ambiente movimentado e cheio de transeuntes foi transmitida unicamente através do som. Graças a ele, mesmo em planos solitários do personagem principal, sentimos toda a correria e agitação de um terminal rodoviário sem nos darmos conta de que tamanha informação está sendo passada para nós unicamente pelo trabalho do diretor de áudio.

Outro ponto técnico muito interessante no filme é a direção de arte, assinada por Carlos Mosca. Os tons azulados em sua maioria e os demais tons frios são quase unanimidade do filme. Não há um item sequer com alguma cor quente, que invoque proximidade, ânimo, euforia. Pensar em um filme “frio” para abordar como tema uma rodoviária, com todo seu movimento, vida e agonia pode soar como um erro, mas a soma das partes fala mais alto. O ambiente reflete o personagem – ou seria o personagem que reflete o ambiente? Tudo é frio. Desde a reação inicial de não levantar os pés para o funcionário que varre o chão até o momento de sair da cadeira quando alguém se senta a seu lado. Os tons azulados casaram com o personagem e o cenário de forma a construir uma estética rica em seus significados.

Cada um destes detalhes, cada uma das nuanças de Terra Erma refletem uma sensibilidade admirável de Helton Paulino. É explícito e quase suplicante o convite para interpretações pessoais dos mais diminutos detalhes. Um convite a uma terra erma, solitária, mesmo dentro de um ambiente tão cheio de pessoas, das mais diversas idades, com os mais diversos objetivos e experiências de vida. Uma invocação de análise de nossas próprias terras ermas, e eis aqui o foco do vídeo. Falar nesse lugar, mencionado a princípio de forma enigmática no título do curta, é falar de uma introspecção do personagem principal. Não falamos aqui, portanto, da terra erma da rodoviária (que não existe), mas sim da terra erma intrínseca ao personagem, carregada para cima e para baixo como uma mala de viagem em busca de um ônibus que nunca chega.

Mas tudo isso, todo esse conteúdo silencioso, transbordando de imagens bem cuidadas por parte do diretor de fotografia Bruno de Sales, não seria tão expressivo sem a atuação de Gagah. Eis aqui um dos grandes trunfos do filme. O ator apresentado pelo curta consegue captar a alma do texto, construindo um personagem tão sutil quanto as intenções do diretor. Uma interpretação tocante e profunda, rica de pensamentos que tantas vezes parecem audíveis em meio a um roteiro de falas mudas – o que demonstra a entrega de Gagah ao papel. Crédito também seja dado ao diretor de elenco, André da Costa Pinto, que conseguiu um resultado no mínimo satisfatório.

Quando Helton encerrou a apresentação de seu curta, afirmando se tratar de um filme estético, com público ainda existente embora seleto na nossa sociedade, eu me senti quase na obrigação de intervir. Claro que me mantive quieto, mas explicarei melhor minhas palavras. Terra Erma tem sim um apelo estético, mas não acho que isso faça dele um filme desprovido de narrativa. Se ser “estético” é primar por uma arte expressiva, um som envolvente e um roteiro rico de simbologias, então que sejam estéticos todos os filmes de hoje em diante. Sejamos mais profundos e cheios de conteúdo, com filmes que possam realmente ser chamados de Arte. Sejamos criadores de qualidade para que essa terra erma se povoe e, juntos, possamos elevar o nome do audiovisual na Paraíba.

30 de maio de 2008

Reflexões solitárias sobre uma terra conhecida


solitários no cinema tailandês


solitários na rodoviária de CG

Terra Erma, de Helton Paulino

Campina Grande tem apresentado recentemente uma safra de filmes corretos e bem acabados, o que me causa uma certa sensação de entusiasmo e desconforto. Na sessão descrita logo abaixo que apresentou um painel bem significativo do cinema feito em CG, o filme que mais me chama a atenção é Terra Erma, de Helton Paulino. E nem coloco em termos de melhor ou pior, mas sim que ele parece sintetizar um pouco anseios gerais de uma linha específica de pensamento cinematográfico. Nesse ponto, coloco ele bem próximo ao ‘o bolo’ de Taciano. São filmes tecnicamente bem feitos, com roteiros minimalistas, decupagem segura e sem diálogos em sua maioria. Tudo certo, tudo bom, porém não pulsa, não respinga quase nada no espectador, e fica por fim uma sensação de indiferença, mas com certo respeito pelo filme alcançado. Basicamente são filmes como aqueles estudantes que se esforçam pra não errar e acabam conseguindo passar por média (alta por sinal) mas nunca conseguem levar a menina mais linda e popular pro cinema ou marcar algum gol na final do campeonato inter-classes (emoções mais verdadeiras do que elogios pomposos de professores inteligentes).

Mas voltando ao filme. Avante. Terra Erma nos propõe basicamente a experiência de observar um dia normal no instigante espaço da rodoviária. Encontros e partidas sempre renderam e sempre devem render um bom material humano para anseios artísticos. Já do título se sabe que o espaço é o protagonista maior do filme, mas eis que nos aparece um personagem que funciona como um elo ficcional para nos aproximar do painel geral apresentado. Mesmo sendo claramente ficcional, o filme flerta com o documentário (que por sinal já rendeu um DOCTV que se passa na rodoviária de Santa Catarina, me parece) e se mostra bastante antenado com o cinema contemporâneo de boa estirpe, mas não sinto nele a potência de revelação do mundo em todo o seu frescor que é a força motriz do bom documentário observativo ou a fluidez orgânica e concentrada da boa estirpe que cito acima e que falo abaixo.

Trago essa questão do documentário observativo à tona, por achar que o personagem central meio que configura esse observador distante, que só consegue se envolver com os dramas que se desenrolam a sua frente de forma solitária e voyeurística. Fica claro em uma cena na qual ele se afasta de uma mulher que senta ao seu lado. Pra sentir, ele precisa se afastar. E aí reside talvez o grande dilema do filme. Imersão ou distração? Distância ou proximidade? Como sentir o filme, se ele parece cambalear inseguro nessas duas direções?

Primeiro nos parece um filme com pegada realista e o uso do artifício do personagem aumenta a sensação de proximidade com o material filmado, afinal, personagem é o principal trunfo do cinema ficcional para envolver o espectador na ação do filme. Mas temos diversos planos muito baixos que fogem do tom naturalista, mas não estou certo que acrescenta algo ao todo, me dando a sensação simplista de ser uma predileção estética de decupagem ou então de ter o significado raso de serem pessoas (figurantes) anônimas. Mas o principal mesmo é uma sacada original que só interessa realmente ao público cinéfilo e que chama tanta atenção pra si que às vezes me dá a sensação de ‘onde está Wally?’. Deixando mais claro, gosto muito da sacada, mas acho que não se conecta bem com o filme em questão. Dispersa um pouco.

Achei estranha a escolha do cineasta referenciado em uma cerveja. Seria mais legal uma lata com o design da coca, escrito Tsai-Liang, com aquelas perninhas puxadas do refrigerante citado. Afinal, por que sempre prestar homenagens a cineastas já obviamente fodas e sagrados e que todos gostam e caso alguém não goste, o problema é todo seu. Ok, pensando melhor, vamos prestar homenagens ao mestre.


Digressão Tsai: ‘Goodbye Dragon Inn’. Além de lançar um olhar sensível e fascinante sobre um espaço bem conhecido de todos nós, a sala de cinema, Tsai constrói cenas e situações que não devem se esvair da memória tão cedo. Tempos mortos e enquadramentos fixos suscitando uma incomum sensação de vitalidade cinematográfica, nesse ponto, se assemelhando ao cinema de ação física, de igual pra igual com os samurais se enfrentando na tela. Cada vez gosto mais de filmes que desconcertam a ponto de fazer o espectador exercitar o pescoço pra chegar mais perto da tela, literalmente mesmo, ou olhar pro lado procurando cumplicidade nas reações alheias.

No decorrer do ‘Terra Erma’ a exploração do espaço e a curiosidade em perceber a percepção do personagem central vai se esvaindo até o ponto da neutralidade. Uma pena que o filme se encerre com um plano meio forçado demais em sua vontade de descrição metafórica. Tudo muito controlado, sem ar pra respirar e nem saco plástico pra sufocar de uma vez por todas. Talvez seja o grande mérito do filme, talvez seja apenas uma impressão de observador distante.

concluo: ‘Terra Erma’ me faz crer que a cartilha foi aprendida, mas que a rebeldia ainda será mais imponente. O problema é desperdiçar o liquido sagrado da cerveja cinéfila ao final. Um pouco de bebida não faz mal a ninguém.

p.s.: a rodoviária de CG é a 3ª mais organizada do Nordeste.

2 de maio de 2008

Os nibelungos, os campinenses, um ato de amor e uma sessão lotada aplaudindo de pé o guardador


Banzo Analítico, de Taciano Valério Terra Erma, de Helton Paulino Amanda e Monick, de André Costa Fotograma, de David Sobel Ecossistema, de David Sobel Metanóia, de Ronaldo Nerys, Hemacromatose, de Bréno César

Alguns dos novos filmes realizados em Campina Grande injetam ânimo e frescor na atual produção de cinema na Paraíba. O panorama exibido no Tintin, ou overdose, deixa claro a inegável força e a refinada educação estética de jovens realizadores atuantes na produção, na cinefilia e na articulação política do setor. A cada novo filme exibido (me parece que a maioria recém finalizado), dava pra perceber um grupo coeso mas não homogêneo em suas escolhas e interesses, o que é sempre bom e abre perspectivas para os novos rumos traçados por uma geração em busca de visibilidade e de afirmação artística.

Ainda espero poder discorrer sobre a minha relação de espectador com cada um dos filmes exibidos, mas a idéia agora é falar em sentido amplo e auto-afirmar uma posição pessoal em relação ao cinema paraibano: antes de mais nada acredito no desejo individual/coletivo em produzir e se lançar nesse abismo de mil léguas que é a aventura de se fazer um filme. Não importa o que lhe move, o que importa é o que você consegue mover.

Filmes são realizados e apreciados por diversos motivos. Apenas olhos e ouvidos que percebem podem ampliar e dar continuidade a experiência cinematográfica. Digo isso pra estabelecer um parâmetro que me parece distanciar o ato de criar e de criticar: enquanto um pressupõe a vertigem do envolvimento do processo criativo, a crítica se firma (e se afirma, infelizmente) como a incapacidade de perceber o outro (fora de seus interesses estéticos e filosóficos), mantendo uma desconfortável posição de distância em relação aos filmes que não lhe pertencem. Só a partir dessa reflexão motivada por questões pessoais e totalmente não relacionadas ao universo cinematográfico, consigo entender melhor a afirmação de Paulo Emílio Sales Gomes: o pior filme brasileiro é mais interessante que o melhor filme estrangeiro.

Consigo entender, mas não assumir inteiramente o slogan. As opções tão aí e as escolhas são sempre individuais. Algo sempre se move por trás e na frente da tela, nem que seja os espectadores que abandonam a sessão antes do fim, ou os entusiastas que aplaudem e se levantam euforicamente para externar o seu gosto. E é por isso que acredito nos filmes: Profissão de fé, como a interpretação de Truffaut para a última cena do filme ‘Luz de inverno’ (de Bergman), ou simplesmente um ato de amor, como o mesmo Truffaut acreditava que seria o cinema de amanhã (obrigado galera da margem, em especial Mirella Burity pelo lindo texto).

Ver um filme como ‘amigos de risco’ (esquema guerrilha produzindo por amigos em Recife) ou então presenciar uma sessão lotada no cine PE aplaudindo intensamente o filme ‘o guardador’ (feito por uma pessoa apenas: Diego), são experiências du karalho, assim como ambos os filmes são: du karalho.
E que se foda os erros, vacilos, incapacidades ou minhas opiniões e referências cinematográficas: eu quero mergulhar junto no sangue do dragão e ser invencível pra conquistar minha bela Kriemhild. Mesmo sabendo que meu tornozelo pode me matar (foto ao lado: os nibelungos - Parte I, de fritz lang).


ENTRE PARENTÊSES

Vamos a cerveja pra esclarecer:
(piada interna) ou (quem vencerá: juntem os filmes, os prêmios, as bitolas e as críticas e façam a contagem final)

Bom, falando de política, ao final da sessão do Tintin rolou um clima estranho que parecia querer acirrar uma disputa que não existe entre o cinema de Campina Grande e o cinema de João Pessoa. Em meio a provocações explícitas de que os realizadores pessoenses não conhecia a realidade campinense (com louváveis exceções segundo consta), e também em meio a uma exaltação pessoal em relação a produtividade do ‘Moinho do Engenho’, onde os campinenses não esperam editais e nem latas de películas para poderem filmar, fico com a cerveja ao final e com a certeza que os realizadores campinenses e pessoenses e paraibanos em geral (do moinho, da ABD/PB, das universidades, das ruas, do interior, ou da casa do caralho, tanto faz pra mim), continuarão fazendo cinema como bem entender, em VHS, HVX, PD, 35mm, 16mm, web cam e na quantidade que quiser e puder fazer. Respeito a articulação e a produtividade do grupo, e respeito principalmente o discurso de afirmar um espaço e um destaque que certamente o cinema realizado em CG já têm, mas acho danoso qualquer intento de desarmonia ou mal entendido, e só concordo em manter um clima de competição caso se disputa no pedra-papel-tesouro, muito mais legal do que dá nota aos filmes. Mas sei que não é nada preocupante (vários realizadores reafirmaram na ocasião a vontade de integrar cada vez mais a Paraíba em torno da produção cinematográfica) e que as perspectivas apontam para uma cooperação mais forte nos próximos projetos ...

E Finalmente sobre A MARGEM

A galera da margem intimou os realizadores criticados em seus textos (eu estou no meio com o maior prazer), e aceitando a sadia provocação de Ramon Porto (escritor do editorial entitulado ‘Um Cão Andaluz’ da edição nº 6, ano 1), publico em breve um texto chamado ‘não há margem sem centro’. A revista é boa demais, os caras e as mulheres gostam de cinema extremo (gozei de alegria ao ver referências a fulci, Deodato, bo vernius, nuneexplotation...etc), escrevem descendo o cacete com uma pretensa firula crítica que admiro mesmo com ressalvas e ainda mantêm um horóscopo tosquíssimo na última página que me faz sorrir tranqüilo ao saber que existem tantos ficcionados e cinéfilos loucos (como todos devem ser) há alguns KM de onde escrevo agora. Só não me convence uma certa monogamia crítica que por vezes revela uma incapacidade em fugir do óbvio e alcançar a maturidade fora do limbo universitário. Talvez por isso não conseguem incluir os realizadores no processo de discussão e reflexão.

21 de abril de 2008

As máquinas estão trabalhando


Instrumento detector de alguma coisa, de Otto Cabral

Talvez você tenha razão Nazário, no mundo tudo já está disseminado. E as imagens então..piii...nem se fala. Nossas vistas confusas e imersas em tanta informação às vezes já não mais consegue perceber o mundo. Retê-lo. Talvez você não tenha visto, afinal não sabemos muita coisa sobre seu passado, mas tem um documentário chamado ‘janela da alma’ em que um entrevistado que se chama Win Wenders diz que usa óculos de aro preto desde criança. Ele diz que gosta, porque limita a sua vista, seleciona, enquadra. E como é importante essa seleção. O diretor só tem que escolher entre as opções possíveis, seguir o seu tino guiado pela sua sensibilidade, farejando possibilidades estéticas, imagéticas, formais e discursivas.

Mas enfim, não era sobre isso que eu gostaria de falar. A sociedade da informação já rendeu alguns trabalhos acadêmicos e algumas boas conversas em mesas de bar. Estive pensando nessa batalha silenciosa entre a fé de um cineasta (ou o primeiro espectador) e a recusa de um personagem. O cineasta (ou o primeiro espectador) crente de uma revelação porvir, e um personagem que pensa, que não se deixa captar. O tempo passa a ser fundamental, passa a ser determinante numa batalha. E se por 10 minutos temos a síntese de um dia (amanhecer/anoitecer), também nos sentimos na batalha, afinal, não sabemos nada sobre você, sobre o seu silêncio, mas pacientes e fascinados com o mistério que lhe envolve, aguardamos a revelação.

E o clímax virá. Você não se revela, mas revela todo o processo, desmascara a angústia do documentarista, desmascara a impossibilidade de captar um personagem, de captar a vida. As máquinas trabalham, mas ainda são leigas. O ancião em silêncio prepara a sua rede. Do que me importa se tu és o diabo ou Antonio Nazário? Fico com a câmera e com o plano frontal perfeitamente cinematográfico, porta sendo fechadas como o pano que cobre o espetáculo, como a janela que se fecha na hora do sono, como o fade do cinema mudo. Enquanto tu me escapa pelo lado do quadro, eu continuo com a minha fé nessa imagem final. Antonio Nazário: agora um personagem, agora uma imagem, agora eterno, agora disseminado.

15 de março de 2008

Autópsia de um homem vivo


O guardador, de Diego Benevides

Crítico francês Bazin acreditava que a morte e o sexo (petit-mort) são assuntos limítrofes da experiência humana, e portanto, não são passíveis de serem mostrados na tela, pois o fato em si seria muito mais relevante do que qualquer experiência estética. Enfim, algo como um filme pornográfico não seria bem um filme, seria um ato sexual documentado. E nesse caso, podemos pensar que filmes como ‘faces da morte’ (ou também os lendários snuff) não tem importância enquanto obra cinematográfica, mas de qualquer forma alimenta a mórbida curiosidade humana.


Em Thesis, filme espanhol dirigido por Alejandro Amenabar (o mesmo de ‘Abra os ojos’) uma cena logo no início traduz melhor essa idéia do fascínio pela morte. Vemos um grupo de pessoas olhando para baixo, para os trilhos do metrô, indicando que uma tragédia acabou de acontecer e um ser humano se esvai em sangue e tripas depois de ter sido atropelado. Acompanhamos a personagem central do filme que chega perto da multidão, sente curiosidade, mas vacila se deve ou não olhar. E é neste ato (de entrega ou repulsão) de olhar ou não olhar, algo canonizado no cinema com a imagem da mocinha que tapa os olhos e se encosta no ombro de seu namorado no momento clímax dos filmes de horror, que podemos pensar no voyeurismo, na representação da morte, na força ou fragilidade de uma imagem e no sentido construído por um filme.

Talvez nada disso esteja evidenciado em ‘O guardador’, vídeo documentário de Diego Benevides que repercute atualmente ao ser selecionado no CINE-PE e após vencer no Fest-Aruanda como melhor vídeo paraibano (esse lance de filmes e festivais ainda terá um post próprio em breve), mas de forma sutil essas questões lá se encontram, e justamente por isso a cena mais comentada é quando vemos por alguns segundos, ou talvez apenas 1 segundo, um cadáver em decomposição sendo levemente levantado pelo personagem condutor do filme.

Ele, o guardador, fala sem pudor sobre a sua relação com a morte, ou mais precisamente, com os cadáveres que serão estudados por universitários. Como um coveiro, ou um médico legista, a morte e seus sórdidos detalhes (corpo apodrecido, pessoas sem identidades, cheiro de formol) fazem parte de seu cotidiano, de seu ofício, de sua vida enfim. E aí a morte fica em segundo plano e o interesse recai exatamente no personagem central, algo típico dos ‘documentários de personagens’ e que costuma funcionar muito bem junto ao público quando se tem a sensibilidade e a esperteza de saber dar contornos a esse estranho tipo de personagem no limite entre a ficção e a realidade. Aos poucos, o guardador deixa de ser sinistro e passa a ser meio lunático, arrancando risos com o seu humor e a sua paixão frenética pelo seu trabalho. Mas justamente aí a morte deixa de ter força... e a vida prevalece mais uma vez.

Seria importante outras considerações sobre o filme de Diego, principalmente no que se refere ao processo de produção. Filme de uma pessoa só, que tem dado muito certo nessa era de vídeo digital e ilha de edição caseira (graças a deus). Mas por ora, acho mais importante frisar o tema da morte mesmo, da morte em sua crueldade nada asséptica, mas ao mesmo tempo escancarada em sua dimensão prosaica e banal, matéria-prima de estudantes universitários e profissionais com vida própria como o guardador. Diego também dirigiu uma ficção abordando a morte, Sina, mas não se saiu tão bem provavelmente por ter superestimado os contornos filosóficos e artísticos que envolvem o tema. Virou uma obra afetada, mas a idéia de que ele faça da morte a força motriz de sua obra me parece uma das melhores faíscas criativas surgidas no contexto do cinema DECOM, como alguns já passam a chamar os filmes feitos sob a chancela da universidade (que anda bem meio boca por sinal). Outro ponto a ser discutido e questionado.

3 de março de 2008

Enraizados - Com excelência fotográfica, a música acabou sendo desperdiçada



crítica por Calina Bispo

Curta-metragem Enraizados, dirigido por Niu Batista e lançado na quarta-feira (27) no belo Theatro Santa Roza. Um vídeo de fotógrafo. Isso não há dúvida. Apesar das consistentes interpretações dos poetas Marco di Aurélio e Chico Viola.

Em poucas palavras o vídeo nos apresentou Minervino e Salustiano. Interpretados por dois homens, artistas e poetas dedicados a personagens densos. E é neste ponto que o roteiro e a direção de Niu Batista precisa amadurecer mais. A idéia subjetiva e introspectiva da vida de dois homens isolados de quaisquer resquícios de urbanidade é fértil, mas não eficaz, principalmente quando ela se instala em solos sertanejos.

Dramaticidade e tragicidade estavam presentes. Isso também ficou claro. O que não ficou claro foi a presença dos dois homens. E a transformação que a tragédia provoca? Isso não existiu, mas existiu o sofrimento e o conflito de idéias a citar o diálogo entre os irmãos sobre a ordem da mãe falecida em que os filhos não deveriam, jamais, ultrapassar as montanhas. Um comenta apenas reforçando a ordem, o outro contesta, mas também não ultrapassa. Uma boa metáfora para a vida, mesmo não sendo bem resolvida.

Um elemento fílmico se tornou excessivo e desperdiçado pela excelência da fotografia de João Carlos Beltrão: a trilha sonora. Feita exclusivamente para o vídeo, as composições são bonitas, mas não se encaixam com a textura fotográfica, nem muito menos com a narrativa do vídeo.

Em cenas como as que anunciavam o final trágico de um dos personagens, a música acaba se transformando em ruído, interrompendo bruscamente a harmonia do espectador com o texto visual. A pulsão na direção de fotografia dispensa qualquer elemento a mais.

A trilha sonora, que deveria ser um elemento fílmico, acabou provocando uma polifonia que não agrada nem aos ouvidos nem aos olhos que se encantam com as cenas que poderiam ser mais belas se o som direto tivesse sido mais explorado.

Quanto ao tempo do filme, foi bem aproveitado, pois não torna o vídeo denso nem cansativo, mesmo com poucos diálogos. Mas tem um problema. Como não há muito esclarecimento sobre o texto fílmico, o espectador acaba ficando meio que perdido por não entender bem do que se trata Enraizados.

Sabemos que é um breve tempo no tempo daqueles dois irmãos. Sabemos que eles têm referencias familiares muito fortes, mas não sabemos porque eles nunca saíram dali. Será que foi só porque a mãe deles disse para não faze-lo? E Minervino, o contestador? Se ele contesta, porque não muda e enfrenta?

Parabéns a Niu Batista que amadureceu em seu trabalho de direção. Isso é perfeitamente comparável quando relembramos O Mundo Yan, seu penúltimo vídeo, também dedicado a dramas pessoais, ao retratar as variações, aflições e alegrias de um portador de necessidades especiais.

Ao contrário do Mundo de Yan, Niu escolheu em Enraizados um caminho mais intimista ao dispensar os diálogos e investir na fotografia. Suas escolhas são mais seguras, revelando sua sensibilidade para investigar e emoldurar os conflitos pessoais do ser humano.

Niu Batista mostrou-se decidido ao lado de Marco di Aurélio, em fazer sem nenhum tipo de incentivo público ou privado, esta produção que é livre de imposições comerciais. A liberdade de Enraizados está garantida pelo trabalho em equipe que foi feito.

Uso aqui uma frase de Bruno de Salles, diretor do premiado Cão Sedento, ao final da estréia de Enraizados: “o cinema paraibano está vivo e as pessoas precisam saber disso!”.

É isso mesmo! Tão vivo que nossas produções não param. As pessoas estão sempre se organizado para filmar ou grava algo novo, ou propor um novo olhar em torno do velho. Prova disso é sabermos que há um Marcos Villar fazendo um vídeo poema sobre a barreira do Cabo Branco, ou um Otto Cabral que pretende documentar em um matadouro de Patos um daqueles homens que são responsáveis por esquartejar o boi e que na sexta-feira santa não trabalha – passa o dia na igreja, ou ainda um Arthur Lins que pensa em fazer um faroeste aqui em João pessoa, ou um Tiago Penna e sua Água Barrenta...a lista é grande...